A necessidade de dizer o óbvio: Lei 14.701 deve ser declarada inconstitucional 4t575q
Ao instituir marco temporal para demarcar terras indígenas, Congresso se afastou da Constituição de 1988 x4h1f

Mobilizados indígena em defesa de seus direitos constitucionais. Foto: Tiago Miotto | Cimi
Em dezembro de 2023, sob a justificativa de regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701/2023. A norma não apenas criou paramentos não previstos no texto constitucional para demarcação de terras indígenas como ignorou um julgamento de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, concluído poucos meses antes.
Entre os dispositivos estabelecidos pela lei e não previstos pela Constituição para demarcação de terras indígenas, estão a necessidade de comprovação da posse, pelos indígenas, do território vindicado em 5 de outubro de 1988, ou a demonstração do conflito possessório pelas vias de fato ou por meio de uma controvérsia judicia, persistentes à data da promulgação da Constituição. Estão também previstos os dispositivos que vedam a ampliação de terras já demarcadas e tornam nulas aquelas demarcações que não vierem a obedecer ao estabelecido na nova norma.
“Norma não apenas criou paramentos não previstos no texto constitucional para demarcação de terras indígenas como ignorou um julgamento de repercussão geral do STF”
O STF, ao analisar a mesma matéria regulada pela Lei 14.701, no Tema 1031, declarou inconstitucional as teses pela lei instituídas como critérios para demarcação de terras indígenas, a exemplo do marco temporal, renitente esbulho e vedação de reestudo de terras já demarcadas.
Convém destacar que a Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas o “direito originário às terras que tradicionalmente ocupam”, responsabilizando a União pela demarcação e proteção das terras indígenas.
Como garantia para a realização destes direitos, foi estabelecido um prazo de cinco anos para que a União concluísse a demarcação de todos os territórios indígenas. ados 35 anos desde a promulgação da Constituição, o Estado brasileiro ainda permanece em mora na demarcação das terras indígenas – e este fato é inquestionável.
Ao promulgar a Lei 14.701/23, o Congresso Nacional se afastou do que estabeleceu a Constituição de 1988 e da interpretação fixada pelo Supremo no julgamento dotado de repercussão geral.
“A Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, responsabilizando a União pela demarcação e proteção”
A lei, claramente inconstitucional – no seu aspecto formal e material –, prolonga a situação de instabilidade para a demarcação das terras indígenas e não contribui com a resolução de um problema real e evidentemente complexo. Ao contrário, ela acirra conflitos históricos e revela um modo de legislar sem comprometimento com as balizas constitucionais, o que tem se tornado recorrente em nosso país.
Em um período em que o óbvio também precisa ser dito, não seria demasiado lembrar que o princípio da separação de Poderes pressupõe o estrito cumprimento das atribuições e limites fixados pela Constituição Federal. Ao STF compete, precipuamente, a guarda da Constituição e sua devida interpretação, e ao Legislativo cabe legislar e fiscalizar os atos do Executivo.
No que diz respeito à interpretação quanto ao alcance jurídico dos artigos 231 e 232 da Constituição, o Supremo tem cumprido com aquilo que lhe compete, sejamos favoráveis ou não. Referimo-nos às 13 teses fixadas no Tema 1031, quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. Nove dos 11 ministros reconheceram que o marco temporal, o renitente esbulho e a vedação do redimensionamento de terras indígenas são contrários ao texto constitucional, assim como a flexibilização do usufruto exclusivo destas terras pelos indígenas.
“As teses tenham sido fixadas em 27 de setembro de 2023 pelo STF e que o Senado tenha aprovado na mesma data o PL que viria a se tornar a Lei 14.701/2023”
Chama atenção o fato de que as teses tenham sido fixadas em 27 de setembro de 2023 pelo STF e que o Senado tenha aprovado na mesma data o PL que viria a se tornar a Lei 14.701/2023. Não apenas isso: o Senado derrubou os vetos presidenciais e desconsiderou em absoluto a decisão do Supremo, promulgando a referida lei meses depois, em 28 de dezembro. A ação legislativa desborda dos limites constitucionais e, por essa razão, já conta com diversas inciativas que questionam sua constitucionalidade perante o Supremo.
Poderiam dizer os incautos: ora, se compete ao Legislativo legislar, logo, estão os parlamentares a cumprir com os seus deveres. Por mais de um motivo, não.
Primeiro, porque o Legislativo usurpa a competência do STF ao interpretar o artigo 231 da Carta de 1988 e fixar ali a existência do marco temporal. E, por meio de Lei Ordinária, o Congresso regulamenta o texto constitucional que já é autoaplicável e não demanda de regulamentação – ainda mais quando o Supremo, nos limites da sua competência hermenêutica, reafirma que a tese posta pelo constituinte no artigo 231 não é a do marco temporal, mas a do indigenato, do direito originário.
Ainda, não é permitido ao Congresso Nacional legislar sobre o que foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental. No caso, os artigos 231 e 232 tratam de direitos fundamentais, pois garantidores da manutenção das condições de existência dos povos indígenas brasileiros. Estamos, portanto, diante de verdadeiras cláusulas pétreas, imutáveis, consagradas sob a maior proteção existente no regime constitucional vigente.
“Ainda, não é permitido ao Congresso Nacional legislar sobre o que foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental”
As cláusulas pétreas são regras estruturais da democracia e do próprio Estado, e por essa razão estão protegidas de maiorias legislativas eventuais. A Constituição neste ponto é clara, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, inc. IV), como são os direitos indígenas – e a Suprema Corte firmou esse entendimento, de que os direitos indígenas são cláusulas pétreas, no julgamento do caso Xokleng em setembro de 2023, no Tema 1031.
Ante o novo cenário criado com a promulgação da Lei 14.701 – que significa um verdadeiro retrocesso social e que a ao largo de qualquer parâmetro constitucional ou de um mínimo de racionalidade institucional e legislava –, urge que o Supremo aprecie e declare a inconstitucionalidade da referida lei, a fim de evitar ofensas à Constituição e açoites aos direitos dos povos indígenas do Brasil.
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*PALOMA GOMES – Advogada e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
RAFAEL MODESTO – Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
**O Artigo foi publicado originalmente no Jornal Jota, em 9 de abril de 2024. O link da original é: https://cimi-br.parainforma.com/opiniao-e-analise/artigos/a-necessidade-de-dizer-o-obvio-lei-14-701-deve-ser-declarada-inconstitucional-09042024